sexta-feira, 20 de agosto de 2010

33 Primaveras (ou primas Veras?)

Amor é aprendizado diário

É também compensação, maior do que qualquer definição de humanidade

Amor é o mais humano dos sentimentos, o mais transformador, mais lindo e mais dolorido quando nos falta

Sorte de quem tem um amor da vida inteira, mesmo que a vida ainda esteja bem no comecinho

Eu tenho sorte

Parabéns, meu amor, por estar aqui, por ser este grande poço de afeto e amor, por ser assim, tão intenso, por não se fazer indiferente à vida

EU TE AMO!

Hoje tem espetáculo, tem sim senhor!

Montaram um circo em meu coração. Como se ele fosse o centro de uma cidade pequena e aconchegante. A praça, o palco de encontros, amores, brincadeiras infantis. É lá que a lona foi montada. Meu coração é ao mesmo tempo o picadeiro, o trapezista, o palhaço, o equilibrista e o mágico.

A cidadezinha está em festa, o espetáculo vai começar.

E de uma só vez, no alto e no chão, apresentam-se dois artistas.


Enquanto o equilibrista luta para manter-se firme na corda bamba que teima em balançar junto com as batidas de seu coração, lá no picadeiro, o mágico traz promessas de mistério e boas histórias em seu sotaque estrangeiro. Transforma o azul da lona em água, e as lâmpadas coloridas em cardumes coreográficos. Nasce então um céu oceânico. E é nesse céu que chega o palhaço. Matreiro, malicioso em seu barco de papel que espirra alegria na platéia enquanto passa.

É tão lindo e colorido o espetáculo que o equilibrista, láááá de sua corda e seu céu sem estrelas,

desequilibra

O equilibrista não sabe nadar. E sem escolha, diante do oceano cada vez mais próximo, ele fecha os olhos, abre os braços e entrega-se. Como se fosse um paraquedista em queda livre com a certeza de que tudo vai dar certo, ele somente se entrega. O mágico, o palhaço e a platéia tem os olhos na queda livre do equilibrista. Sentem medo e uma pontinha de inveja. A platéia levanta-se de uma só vez. O equilibrista continua de olhos fechados e o oceano em que ele não sabe nadar continua aproximando-se.


O oceano aproxima-se rapidamente, mas o equilibrista, subvertendo as leis da física, cai lentamente.

Cai lentamente, o equilibrista

Aproxima-se rapidamente, o oceano


Lentamente

Rapidamente

Lentamente

Rapidamente

Quando oceano e equilibrista estão numa distância íntima, quando enfim podem tocar-se, a platéia em coro diz: úúúúúú ahhhhhhh.


Nesse momento há no céu outro artista: o trapezista observava seu colega, em silêncio. O perigo da queda do equilibrista comove o trapezista...


Quando o equilibrista abre os olhos, ele está nos braços do orgulhoso trapezista que o pousa com cuidado de volta no céu sem azul.


A plateia aplaude durante um longo tempo, comentam entre si a coragem dos artistas, o espetáculo primoroso. Pensam que estavam todos preparados. Não reparam, em meio a excitação, que mágico, palhaço, trapezista e equibrista estão parados, incrédulos diante do próprio espetáculo.

Olham-se as duplas de artistas uma no céu, outra no oceano, e sabem, em silêncio, que nunca mais serão os mesmos.

A moça e o Rádio

A moça ouvia o rádio


A moça ouvia impaciente as propagandas no rádio, sempre,

até o dia em que soube que eram elas, as propagandas, que mantinham o rádio


Então a moça passou a ter um pouco mais de paciência,

só um pouco


A moça então, com um pouco mais de paciência, ouvia o bloco de propagandas,

sentada na cama, mãos cruzadas entre os joelhos,

olhos arregalados na tentativa de ajudar ao ouvido ficar bem ouvinte


A moça ainda de cabelos despenteados, dentes não escovados e camisola de algodão,

ficava assim,

na cama,

as mãos entre os joelhos,

sentada


O coração da moça sabia de cor as propagandas de antes do programa


O coração da moça, assim quando as propagandas iam passando

_o salão de beleza,

o escritório de contabilidade_

iniciava uma arritmia ritmada aumentando, aumentando,

e era tão forte que o corpo da moça até balançava


O coração aumentava até quase explodir,

até que o corpo não mais suportasse controlar aquele coração em fuga,

até que o homem da rádio falava,

falava pra moça_o coração dela que afirmava:


bom dia queridos ouvintes!


E então?


Então a moça despertava



(Este escrito, reescrito, é para meu amor, que reamo todos os dias, Rodrigo Sá Pedro)

quinta-feira, 6 de maio de 2010

O BROCHE ou o Imoral da história

Tardes frias são melhores para leitura. Nesses dias a biblioteca fica cheia. Crianças que dão gosto de se ver. Compenetradas, olhos brilhantes, corpo inerte. Carmem gostava disso. Não gostava de barulho. É preciso silêncio para ouvir o som das páginas. É preciso um ambiente limpo para que o mofo histórico tome conta do espaço. Embora em tudo negasse, a bibliotecária era jovem. Talvez fosse bonita por detrás da ordem dos cabelos, óculos e broche combinando com o brinco.

Podia-se dizer que Dito e Carmem eram conhecidos de longa data. O rapaz freqüentava a biblioteca antes mesmo de Carmem imaginar que habitaria uma sala fria e respeitosa que continha, ela dizia, todos os segredos do mundo. Dito e Carmem nunca conversaram. Bons dias, boas tardes e até amanhãs, compunham o repertório da relação de cumplicidade entre o freqüentador e a moça. Naquela tarde além de Carmem, Dito, a Sra.Deurides e seus obedientes netos, não havia mais ninguém na biblioteca municipal. Carmem estranhou a ausência de movimento. Olhou pela janela, o céu estava repleto de nuvens grávidas prestes a darem à luz uma deliciosa escuridão. Barulho de chuva Carmem gostava. Estranho as pessoas não desejarem ler naquele dia...

***

O menino era bem arrumado. Cabelos penteados, divididos e domados com gel. A roupa meio fora de moda tinha moldura de suspensórios. Quase uma representação daqueles retratos antigos, o traje estava completo não fosse pela ausência dos óculos de grau. Carmem foi logo se encantando. Criança mais bonitinha. Jeito de quem gosta mesmo de livros e corpos inertes. Ufa! O que a moça menos desejava naquele dia era uma criança barulhenta e perguntadeira. Para dúvidas é que se fazem os livros, oras. Rubinho, o menino, ainda procurou os óculos do pai em casa, mas como não os encontrara convenceu-se de que ficariam mesmo grandes demais e resolveu ir assim mesmo, com traje incompleto, para a biblioteca. Prédio antigo, o nariz informou. Sem sons ou ruídos, resmungou seu ouvido entediado. A boca, sem ter o que sentir, partiu para a ação. Oi! Oi! O menininho procura alguma coisa? Procuro, procuro. (Será que a moça sabia dos óculos?). Então? É que não encontrei então pensei em vir assim mesmo mas se a Senhora se zanga eu volto procuro mais um pouco na verdade enxergar eu enxergo direito mas talvez os livros não me respeitem assim. (Besta! Porque não peguei os óculos do meu avô). Rubinho deu meia volta e ia saindo em disparada quando lembrou de onde estava e conteve os passos...seguiu-se um eterno período de silêncio. O menino respirou fundo e continuou. Pé ante pé, deu para sentir o quanto eram distantes as distâncias de um prédio antigo.

Carmem, parada, observava o menino. Não entendeu nada, mas uma coisa não saía de sua cabeça. Deixa pra lá. Era só um menino. E um menino bem confuso. Deixa pra lá. Mas não são as crianças as portadoras da sabedoria cristalina que só a ingenuidade contém? Deixa pra lá. Hoje em dia tá tudo doido mesmo, criança vestindo roupa de adulto. Deixa pra lá. A certeza na cabeça e a dúvida nos dedos. Frenéticos, faziam uma coreografia nervosa: mindinho, seu vizinho, pai de todos e fura olho. O polegar fica de fora, mas o movimento deve ser rápido. O barulho incomodou a Sra. Deurides. Que desrespeito! E saiu, ultrapassando o menino que até aquele momento ainda tentava sair do prédio como se deve sair de uma biblioteca. Os netos, um menino e uma menina, correndinho, correndinho, presos nas mãos da avó, tentavam acompanhar o movimento brabo para não cair. Carmem não conseguia ficar quieta, ignorou a Sra. Deurides e seus netos em disparada. Mindinho, seu vizinho, pai de todos, fura olho. Polegar fica de fora. Movimento rápido. Dito não entendeu se ia ou ficava. Na dúvida, foi. Deixou o livro sobre o balcão, longe do polegar de Carmem que apontava para o teto com afrescos barrocos. E saiu, nem correndo como a Sra.Deurides, nem quase parando como o menino. Quando ultrapassou o peralta, deu uma olhadinha de repreensão e virou-se, um quase nada, para dar um sorriso de apoio à Carmem. O menino ainda tentou agarrar Dito_ ele precisava agarrar-se em algo, que fosse um braço, pelo menos. Môôôço...nada. Ás vezes os adultos podem ser muito cruéis com as crianças. Agora parecia que a distância entre o menino e a moça era um quase nada e seus dedos nervosos o alcançariam a qualquer momento. Quem entende essas distâncias de prédios antigos? Agora eram só os dois. Ah! E os anjos barrocos dos afrescos que o polegar de Carmem apontava. Seriam os anjos as únicas testemunhas? Mindinho, seu vizinho, pai de todos, fura olho. Polegar fica de fora. Mãos paradas, coração batendo forte, e ela ainda tomando coragem. Mindinho, seu vizinho, pai de todos, fura olho. Agora bem devagar. O polegar ainda de fora. Menino! Ô menino! Os pés que antes eram pé ante pé agora eram um giro em si, e num instante estavam os dois, o menino e a bibliotecária, frente a frente novamente. Você me chamou de SE NHO RA? Sim, senhora! Porquê? Por quê? É, porquê? O menino entendeu que a moça não aceitaria um “por respeito” como resposta. Olhou detalhadamente cada detalhe de Carmem. Carmem era cheinha de detalhes. Rubinho sabia, devia escolher um só detalhe, algo para responder, e não ficar enrolando. Foi assim que ensinou Dona Domitilla, a professora de leitura na escola. Ensinou à moda antiga, com palmatória que era pra ficar bem ensinadinho. Ficou. Rubinho olhava os detalhes da moça que parecia sim, uma velha senhora, e demorou a encontrar uma boa resposta que o fizesse sair da biblioteca ainda com vida. E a resposta veio reluzente, cheia de brilhinhos coloridos em forma de borboleta. Mostrando a segurança de um juiz de futebol, Rubinho foi direto! O broche. O broche!? Sim, o broche. Carmem tirou o broche. Contidamente. E, contidamente, jogou-o na lixeira de madeira que ficava embaixo de sua mesa rodeada de livros. Deu uma passadinha de mão na marca do alfinete, tirou o amassadinho quase invisível da blusa branca de cetim, cruzou as mãos na frente da saia, quase como os jogadores faziam quando iam defender pênalti (observou a cabeça atenta de Rubinho) e perguntou: e então? Então? Hummm. Ahhh, bem melhor!

Carmem soltou um suspiro daqueles! Quase que se ouvia. Os olhos curiosos de Rubinho viram os anjinhos barrocos voando em roda no afresco do teto. Seu nariz sentiu o cheirinho de chuva chegando. E ele observou que o quase nada de distância entre ele e Carmem não o assustava mais. Mas observou, criança mais bonitinha, que a distância entre ele e a saída para a rua era ainda menor. Tchau! Não vai levar nenhum livro? Hoje não. E a boca abriu um riso escancarado mostrando todos os dentinhos.

***

O avô de Rubinho tem óculos de aro de tartaruga e um litro de whisky escondido atrás dos livros da estante do escritório, lá bem no alto. Um dia o avô chamou o neto para uma conversa dessas que se tem quando um menino deve aprender coisa de homem, mesmo que seja ainda bem criança. Chamou Rubinho, fechou a porta do escritório e com os pés na ponta tirou duas garrafas detrás dos livros grossos da estante que fica bem lá no alto. Cúmplice, mostrou as garrafas pro neto colocando o indicador na boca, psiiiii. Rubinho entendeu. Ele entendia bem dessas coisas. O avô serviu whisky num copo e um licorzinho de jabuticaba no outro que empurrou para o neto e ensinou, nesse dia inesquecível, que às vezes é melhor uma mentira bem bonita do que uma verdade feia.