segunda-feira, 30 de julho de 2007

Amante do Vento II

Foi num sonho que senti aquele sopro pela primeira vez. O sopro que me arrepiou a alma irremediavelmente, despertando todos os sentidos, me tirando do torpor daquela vida inútil, fútil. Comandada e vigiada por meu marido e senhor, tudo o que ouvia, o que consumia, o que falava, colaborava para morte lenta dos meus sentidos.

E os passos ritmados dos soldados, os gestos repetidos de submissão dos servos, a arrogância burra das outras damas, enfim, a puritana e triste alta sociedade, de repente começou a me divertir, porque enxergava neles o que antes também me faltava, uma vontade corajosa de dar aos sentidos importância maior do que as aparências permitiam.

Naquele dia decidi entrar na cozinha e explorar os sabores que os servos conheciam quando estavam livres dos gestos de submissão calculada. O ambiente estava tomado por um cheiro picante e ao mesmo tempo adocicado. Muito diferente da comida servida todos os dias no almoço e jantar, pois meu marido, desculpe, meu senhor, não podia com muito sal, nem com pimenta, alho, cebola, cravo, alecrim...nosso cardápio diário era tão tedioso quanto a própria vida.

Foi aquele sopro que me despertou para o aroma que vinha da cozinha já tarde, quando eu, com uma insônia crônica, passava as noites a me perguntar se a vida era só aquilo mesmo. Me aproveitei do susto dos servos quando adentrei o ambiente proibido da cozinha, numa noite sem lua, e ordenei que preparassem a receita que me atormentava há dias. Queria saborear aquele quitute de aroma doce e picante. Os servos hesitaram por um momento, mas percebi um brilho diferente, no tempo de um instante, nos olhos da senhora de longos e negros cabelos que preparava a comida, a nossa e a deles.

O que ela me serviu foi um caldo avermelhado, que duvidei ser o dono daquela aroma. Falei um pouco alto, não tanto que acordasse meu marido, mas o suficiente para assustá-los e fazê-los entender que queria mesmo provar daquele misterioso sabor. Os outros se assustaram, mas a mulher não, me estendeu novamente o pote com o caldo avermelhado e sorriu maliciosamente. Levei lentamente o líquido quente a boca e provei. Um sabor mais picante que doce desceu minha garganta aquecendo meu rosto e fazendo minhas faces corar. E de repente me senti flutuar, não calmamente, mas em meio a um vento forte e refrescante, que revirou meus cabelos e o vestido de dormir. A mulher agora ria indisfarçadamente um riso alto e sonoro, e da boca dela saiam borboletas prateadas e douradas, milhares delas, que me envolveram tocando minha pele e me fazendo arrepiar. Eu ouvia a música que saía da risada dela e sentia o arrepio das borboletas, e foi então que tive a sensação do sonho e o mesmo sopro me fez lembrar do toque dos mágicos insetos.

A confusão despertou meu marido que desceu chamando pelos guardas. Quando ele chegou, eu já estava no chão, os cabelos revirados, o vestido bagunçado deixando minhas pernas quase que totalmente a mostra. Percebi então, pelo espanto e indignação de seu rosto, que eu estava só. Todos os servos haviam fugido. Imediatamente ele expulsou os guardas ordenando que esquecessem aquela cena. Admiravelmente não senti medo algum, uma sensação de liberdade infinita tomava conta da minha mente. E antes que ele pudesse falar qualquer coisa, acabei de tirar meu vestido e o envolvi com meu corpo...

Aquele foi o último dia que o vi. Hoje sou parte do vento, e não tenho um senhor. Mas visito, em noites sem lua, um cavalheiro solitário, que emana de seu corpo uma energia poderosa, que é viril mas se entrega a mim como um menino, curioso em desvendar meus sentidos. E que tem o poder de ouvir os segredos do vento quando repousa seu rosto em meus seios após uma noite de amor.

Os incríveis e esculturais pés de Clélia

Todos os dias acordarás antes mesmo que o sol
Vestirás tuas vestes simples, de trabalho
Sentirás antes que todos, mas junto com o sol
O tato com a terra úmida pela noite fria
Afofarás a terra, ararás e adubarás
Prepararás os sulcos para que recebam as sementes
E cuidarás para que das sementes nasçam os frutos
Cuidarás pacientemente, dia após dia, para que os animais não magoem a terra
E não pisem nos brotos
E assistirás, feliz, ao nascimento dos frutos
E então colherás, e separarás uma pequena parte dos alimentos para sua família
E o restante, a imensa maioria da colheita,
Enviarás para que alimente outras famílias
que moram em outros mundos, muito aquém do seu
E pensarás se existe mesmo outro mundo após a plantação
Porque a paisagem que te rodeia é um mosaico de culturas:
Arroz, feijão, café, milho
que acabam lá na linha do horizonte de todos os horizontes a sua volta

Um dia, no horizonte, avistarás um grupo de homens
Homens de um outro mundo, não do seu
tampouco dos que transportam o produto de sua colheita
Notarás que esses homens trazem máquinas desconhecidas,
Sem nenhuma valia para seu mundo de plantações
Não te assustarás com os forasteiros
Porém, te surpreenderás um convite:
Que pouse para um retrato
Aceitarás num misto de timidez e excitação
Farás uma pose bem bonita, a melhor que conseguires preparar
Entretanto pedirás, decidida, que te fotografe somente os pés
E mais, que o leve consigo o retratista,
para seu mundo e outros que ainda visitarás
E naquele momento responderás ao retratista e a si mesma:
Sim, se é com os pés que cuido da terra, então serão eles a conhecer os outros mundos.

*Este texto foi inspirado pelo retrato dos pés de Clélia, de autoria do fotógrafo Alan Nielsen http://www.alannielsen.com/ . Faz parte do ensaio fotográfico “Caminhos da Roça”, realizado na cidade de Brodowski, em homenagem ao grande pintor Cândido Portinari.

Minha Casa

Minha casa tem duas janelas de frente.
Daquelas de interior, em que as moças casadoiras debruçam para espiar os garbosos rapazes que passam, e as senhoras futriqueiras, descansam seus braços numa almofada, para melhor espiar as moças espiando (que vergonha), aqueles rapazes tão distintos e...garbosos.

A porta da minha casa se abre em duas, pra fora.
E tem dois degraus até entrar na sala.
As moças casadoiras, as mulheres futriqueiras e as crianças da casa, sempre sentam nessa porta no comecinho da noite.
Todos os assuntos da rua são tratados ali. As moças casadoiras que conseguiram conversar com algum rapaz garboso primeiro são repreendidas pelas distintas senhoras que passaram o dia com os braços debruçados na janela. Em seguida são bombardeadas ansiosamente, com milhões de perguntas pelas mesmas senhoras distintas, sobre o que falaram, como era a voz, os olhos e se sentiram o perfume do rapaz.
(Moças casadoiras, um conselho: se sentirem o perfume de qualquer desses rapazes garbosos, nunca revelem às distintas senhoras.)

Minha casa tem também um telhado em forma de triângulo, feito de telhas de barro e com uma chaminé. A chaminé espalha o perfume das compotas de fruta, do frango caipira “fôgado”, do arroz doce, da broa de milho, do bolo de fubá e, em dia de Santo Antônio_aquele das moças casadoiras_ um delicioso aroma de quentão.
Todos esses perfumes saem do fogão à lenha, que funciona o dia todo.
E assim, a comprida mesa de madeira rústica permanece abastecida das deliciosas iguarias diariamente. Os meninos passam o dia beliscando e levando pequenos tapinhas nas mãos por conta dos doces preparados ali.

O quintal da minha casa, onde as crianças se refugiam dos tapinhas na cozinha, tem chão de terra vermelha. Uma enorme jabuticabeira em companhia de uma mangueira e um pé de carambola fazem uma refrescante sombra em quase todo quintal.
É dali, daquele quintal, que em noite de lua cheia se avista o céu mais bonito entre todos os céus que conheço. Uma viola e uma fogueira acompanham as incríveis estórias dos contadores de causos, noite adentro. Lentamente as crianças se aquietam nos colos das mães, tias, e muito frequentemente, das avós. É desse momento que guardo a melhor sensação vivida nesta casa, a minha casa. Aquele soninho que vem chegando no calor da fogueira, embalado pela música caipira e a estória do dia em que o Tinda respondeu simplesmente “Paca Tatu” (cotia não né!) e com isso ganhou um canivete novinho em folha.

Chegar na minha casa é simples: passando pela Rua do Coração, bem devagar, atravesse a ponte que passa pelo Riacho da Razão. Não tente entender o que dizem as águas desse riacho. As pessoas que convidei pra conhecer a minha casa, e que deram ouvidos à aparente sensatez, nunca chegaram, apesar da proximidade do riacho com a Rua da Imaginação. A casa então fica na Rua da Imaginação e não tem número. Mas é fácil identificá-la porque tem duas janelas azuis na frente e uma porta, de duas partes, que permanecem sempre abertas.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

O Sonho de Orieta

Sonhei que sobrevoava a cidade. É bom observar os lugares a distância. A beleza dos monumentos e construções é algo de tirar o ar. Sabe uma sensação de ter poucos olhos diante de algo muito bonito?

Fiquei voando sozinha e observando as pessoas voltando para casa. E vi os carros, aqui são muitos, retornando todos ao mesmo tempo. Uma fila interminável no sentido contrário ao maior monumento da cidade: dois prédios muito altos, com duas conchas aos pés, uma côncava e a outra convexa. É aquele prédio, que alguns chamam, cinicamente, de “A Casa do Povo”. Ah, se você pudesse ver como essa casa é diferente das verdadeiras casas do povo. É muita pretensão em forma de concreto e beleza arquitetônica. Impossível não pensar nos universos áridos do nordeste, nos barracos das favelas, nos viadutos transformados em lar.

Nesse momento quase caio e percebo que devo me concentrar mais, pra não “perder” meu vôo. Já anoiteceu e o movimento de carros é bem menor. Agora está quase tudo deserto. Vejo, ao lado da “Casa do Povo”, outra construção, menor, porém não menos imponente. Essa eles chamam de “Palácio”. Como se ali vivessem um príncipe e uma princesa...

E aconteceu algo que só é possível nos sonhos. Consegui ultrapassar o concreto, driblando os guardas e me vi dentro do “Palácio”. Estava quase completamente escuro, só uma sala ainda permanecia com a luz acesa. Imaginei ser a sala do trono, porque os móveis, todos em madeira nobre e escura, transpiravam tradição. Havia um homem sentado diante da maior mesa, numa cadeira enorme (seria o trono?). Não parecia um príncipe. Seus cabelos não eram lisos e louros e pude observar que entre seus dedos entrelaçados, em que apoiava a cabeça, faltava um. Ele estava muito compenetrado, os olhos distantes, fixos, brilhavam muito. Não me parecia feliz. Como queria penetrar seus pensamentos! Fui tomada de um sentimento de solidão incrível. Não me lembro de ter me sentido assim nem em meus piores momentos. Mas o sentimento não era meu, era dele. Daquele homem sentado, solitário e distante.

Acordei assustada e chorando...

O que acontece na nossa vida que nos distancia tanto de quem verdadeiramente somos? Em que ponto ficaram os sentimentos sinceros, quem roubaram nossas risadas espontâneas? Porque nossas maiores crueldades não são ainda acertar pássaros com estilingue, furar pneu de carro, beliscar escondido o irmão caçula? E os nossos sonhos de salvar o mundo, onde estão? Porque somos tão fracos...

Aqueles olhos...aqueles olhos não me saem da cabeça. Olhos de criança no rosto meio envelhecido daquele homem.

A sensação de solidão que sinto agora é minha. Se lá era um palácio, e ele o Rei, nosso Rei estava triste e com medo.E agora?