quarta-feira, 15 de julho de 2009

Espatódea


Ela morava numa estrela, e porque a noite estava quente resolveu sair à procura de outra constelação. E foi o bafo do hálito dele que a guiou: leve, solta, sem gravidade e sem rumo. Um hálito novo, um sopro quente e sonoro. E ela esqueceu o calor e esqueceu que tinha saído à procura de um lugar mais fresco. Porque junto com o hálito ele dizia palavras doces e moles. Palavras molhadas que saíam do diafragma dançando e fazendo as cordas vocais vibrarem como as cordas do violão. Ela olhava curiosa a cabeça laranja dele. Cabeça cor de sol. E ficou feliz porque conseguiu fixar seu olhar nas molas vibrantes do cabelo dele sem machucar os olhos. Ela pensou que ele fosse o sol. E ficou encantada. Um encanto de descoberta infantil, mágica. E com olhos de criança, protegida pela certeza de que ele não a via, ficou observando ele cantar e dançar.
Ele percebeu que ela o olhava. E cantou pra ela assim de um jeito engraçadinho, disfarçando, para que ela não sentisse vergonha. Ela parou em outra estrela para observar e ouvir melhor. E seu peito encheu, encheu e sob ele um músculo começou a bater: tum, tum, tum. Um músculo vermelho e vibrante. Ela não entendeu o que era, mas foi ali que nasceu o amor.
E seu mundo expandiu para além das estrelas. Ela aprendeu a suspirar e a sonhar. Ela, que até então morava no lugar aonde todos iam quando estavam sonhando. Pra onde os casais apaixonados olhavam quando estavam abraçados em frente ao mar. Onde os amantes conseguiam ler os palpites que geravam bebês.Ela estendeu a mão para que ele a seguisse. E os dois flutuaram brincando de escorregar no anel de Saturno.Ela deu uma pirueta no ar, ele dançou girando com um pé só.Ela mostrou uma estrela que acabara de nascer, ele encostou a língua na ponta do nariz.Ela se espantou com o som da própria risada e ficaram brincando de rir durante muito tempo.
Mas a Terra girava, girava e não parava de girar. E o primeiro raio de sol apareceu. E ela entendeu que ele não era o sol. E fugiu, porque o sol a cegava. Ele ficou com a mão estendida esperando, mas ela sumiu. Ainda deu tempo dela deixar uma lembrança. Um brilho, brilho emprestado de estrela, que ficou na mão dele fixo como o olhar curioso da primeira vez que ela o viu. Ele apertou a mão contra o peito e acordou assim. Foi até a janela, mas não conseguiu olhar o céu. O sol fechou suas pálpebras e ele entendeu que o dia seria uma longa espera. E decidiu que o nome dela seria Espatódea.
Desde então há uma estrela no céu enfeitada com flores laranja e habitada por ela. Todos os dias ela vive a expectativa de que a Terra gire logo até o ponto onde ele mora e sempre o encontra olhando pela janela a espera do crepúsculo que antecede o amor.
(Este conto foi re-publicado porque ganhou uma participação mais que especial. Veronica Yanina, artista plástica que mora em Floripa me presenteou com essa ilustração que parece um sonho! Em breve teremos mais participações da V., Vê ou Nina em texto e imagem.)

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Um duelo de fé


Foi como num filme de bang bang em que oponentes convictos de sua fé marcam um duelo honesto. De um lado, artistas e crianças munidos de giz colorido, tintas, pincéis, brincadeiras e sorrisos. De outro, os paroquianos silenciosos armados com a certeza da fé milenar e da convicção de que o preto é preto e o branco é branco. Havia ali uma linha invisível, etérea, que separava os oponentes ao mesmo tempo em que unia duas crenças distintas. Afinal, quem pode questionar a legitimidade daqueles que defendem a arte ou a religião?

O duelo parece ficção, mas aconteceu. Foi na tarde de sábado (27/06) em frente à Igreja Nossa Senhora de Fátima, a “Igrejinha” da 308 sul. Uma manifestação em prol do painel de autoria do artista plástico piauense Francisco de Fátima Galeno reuniu cerca de 150 artistas e simpatizantes em defesa de uma santa colorida, lúdica e brincalhona. A polêmica nasceu antes mesmo do início dos trabalhos de restauração no templo, em novembro, quando um jornal publicou um rascunho do artista com a interpretação de Nossa Senhora de Fátima para o interior da igrejinha. Desde então, os paroquianos revoltados manifestaram ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) o descontentamento com a obra. Sentiram-se ofendidos em sua fé por uma santa demasiado colorida, que tem como adorno de seu manto carretéis de linha. Entendem que as cores e a interpretação subjetiva de Galeno podem atrapalhar a paz do templo. Defendem seu direito à contemplação, à reflexão espiritual pautada numa fé convicta e obediente à Santa Madre Igreja. Como argumento, os oponentes usam em sua defesa um ponto em comum, as crianças. Os paroquianos defendem a imagem bem definida de barro baseados no milagre da aparição de Nossa Senhora de Fátima. Para os católicos, a comprovação do milagre ganha reforço na ignorância dos três pastorinhos que, apesar de analfabetos e do isolamento em que viviam, conseguiram descrever detalhes ornamentais como o manto e a coroa.

Para o artista e seus simpatizantes nada melhor que o colorido das pipas e carretéis para expressar a intimidade de Nossa Senhora de Fátima com os pequenos. Na visão artística, o que importa é a liberdade e a verdade com que cada um interpreta e expressa sua fé. A santa de Galeno não tem rosto. Um dos pontos mais polêmicos junto com a semelhança com outra Nossa Senhora, a Aparecida. Se para os paroquianos a falta de feições significa ausência, para os artistas e as crianças que participaram da manifestação, a ausência é o espaço para comunhão.

Durante duas horas, enquanto durou a festiva manifestação, alguns artistas expressavam sua indignação com balões amarrados aos cabelos como se quisessem tirar os pés do chão, ficando mais próximos do céu. Nas rodas de conversa outro fato era relembrado a todo momento. Não é a primeira vez que há polêmica envolvendo a Igrejinha e a arte. No final dos anos 60, as obras que originalmente ornamentavam o templo eram de autoria do ítalo-brasileiro Alfredo Volpi. Considerada profanas pelos capuchinhos responsáveis pela Igrejinha na época, bandeiras de São João (características de Volpi), a santa e uma pomba foram cobertas por camadas de tinta branca.

Galeno_que além de Fátima traz outro santo no nome_participava da manifestação conversando e tirando fotos com os presentes. Por todo o processo da restauração, o artista modificou a obra umas tantas vezes para agradar aos paroquianos. Desistiu. Um dos paroquianos que arrumava as cadeiras para a missa admitiu, é mesmo difícil agradar a todos.

Por todo o tempo, o duelo aconteceu sob o olhar compassivo das duas representações da santa de Fátima. A santa de Galeno e a tradicional representação de barro ficam lado a lado no altar. Quem tem olhos guiados por carretéis conseguiu perceber no duelo duas vencedoras. As santas, cada qual representando um oponente, conseguiram unir como nunca fiéis que de tão opostos tornaram-se iguais. No duelo de sábado, saíram vencedoras a arte e a religião, o direito que cada um tem à sua fé. Porém foi só uma batalha, a guerra permanece com muita polêmica e ainda sem vencedores e envolve além de artistas e paroquianos, uma decisão que cabe, no momento, ao IPHAN.


Texto de Carolina Borges e foto de Rose May Carneiro que flagrou o artista Galeno dando os retoques finais ao polêmico painel da Igrejinha enquanto ouvia canto gregoriano.

(Esse texto foi produzido para o jornal laboratório do IESB. Prometi a Orieta que não postaria textos de fatos reais, mas quem aí tem coragem de dizer que a imaginação não é real?)

terça-feira, 12 de maio de 2009

Sobre eu e você

Quando eu era criança e escrevia palavras na língua fluída e espontânea que só os pequenos têm, era ele o que dentre os céticos adultos, me compreendia. Enquanto os céticos diziam: olha essa menina estragando os livros! Ele entendia: ela tá é escrevendo as entrelinhas...

Cresci numa família normal: quando as cores do lugar não mais surpreendiam, mudávamos. Quando saíamos, eu e meus tantos irmãos, à rabiscar paredes e escrever as entrelinhas dos livros, pai e mãe, como todos os outros _ todos são assim, né? _ pai e mãe festavam comemorando nossa rica interpretação do mundo.

Depois, na adolescência, quando nosso umbigo é o planeta ao redor do qual todos os outros gravitam, achei que estava tudo errado _ como assim meu pai não é um super herói?

Briguei e me afastei.

Hoje, sem o peso de ser o centro do universo, tenho em você, pai, meu companheiro de brincadeiras. Compartilhamos alguns segredos entre risadinhas e feição endiabrada. O segredo? Comemos doces escondidos...

Quando era criança e me perguntavam: menina, quem é seu namorado? Eu respondia toda orgulhosa: MEU PAI!

Freud pára! Sossega! Deixa que eu explico:

É que nascemos entendendo o mundo como ele é: namorado bom é aquele que sabe desenhar melhor que os outros, que sorri quando todos estão sérios e que muda de cidade quando as cores não mais surpreendem.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Minha Eliana



Andava cansada dos dias todos iguais. Cansada da busca incessante do que afinal viemos fazer aqui? Cansada das minhas dúvidas, inclusive.


Dobrei a esquina e vi um grupo de amigos. Meio hyppies, meio sonhadores, provocativos por demais. Ela usava mini-saia e fumava com uma casualidade de causar inveja. Cabelos curtos, lindas pernas sensuais. Olhava um e outro entre risadas e provocações. Sua inteligência era esperta. Do tipo que teve que aprender pra enfrentar a vida. Ahhh, a vida! Vi nela a vida que faltava em mim. A coragem de ir ao encontro de todas as dúvidas, as próprias e as alheias. Ora revelando tudo, ora tornando-se outra. Outra ela.


Era a outra quem estava ali. Enganando a todos, enquanto acreditava em sua nova história de vida. Afinal, quem daquele grupo sabia de suas dores infantis? Da solidão precoce? Da família interrompida? Quem dali sabia do medo cultivado num jardim onde nasciam rosas de suas dores? Quem dali conhecia seu imenso e inexplicável medo do sofrimento que segue ao amor.


Ela disfarçava com maestria. Atriz interpretando a personagem de sua vida, a personagem que era a outra Ela. Quem seria capaz de reconhecer a insegurança nas provocações inteligentes finalizadas com bolinhas que fazia com a fumaça do cigarro?


A mulher da mini-saia que fumava quando poucas tinham coragem, queria ter filhos logo. O quanto antes. Queria preencher a lacuna do amor familiar. Da casa cheia da paixão dos pais, de seus dengos acariciados pela mãe, das artes com a avó cigana. Ela queria continuar as brincadeiras interrompidas. Precisava com urgência preencher uma casa de alegria infantil e plena. Antes que tudo fosse em vão. Talvez assim reencontrasse ela mesma, a que sempre foi. Talvez assim juntasse o antes com o agora podendo continuar enfim, a viver a vida.


Hoje ela aprendeu que o vaso quebrado nunca mais será o mesmo. Tentou de tudo. Todos os sentimentos que pudessem colar uma verdade na outra, eliminando assim a fresta por onde passa a dor. Hoje ela me olhou. Do apagado de sua outra me fitou, colorindo minha vida de sentido.


As dúvidas enfim, cessaram.


Estou indo em busca de outras verdades e dúvidas novinhas em folha. Agora o que sou é mais leve porque você me libertou, mãe querida.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

A menina da Rodô

Aquela menina que pede dinheiro aos mineiros, nordestinos que passam pela rodoviária, ainda não sabe que cresceu. Ela anda desconfiada que o homem de farda e revólver na cintura quer dela uma sedução que não tem. E por isso, quer parar os mamilos teimosos que crescem à sua revelia. Alheios à vontade que a menina tem de brincar. De parar de crescer e passar as tardes desenhando com os amigos, todos menores que ela. Ela se esforça para esconder a própria meninice atráz de seus olhos bravos e seu camisão folgado. E estuda suas atitudes numa tentativa de forjar sua luta contra os perigos da rodoviária:


o homem da graxa no sapato

o homem que passa a pé

o homem de farda e revólver na cintura

a fome de comida e alegria

o grupo dos adultos que aguarda a volta das crianças de mãos cheias

o corpo que cresce e convida sabe-se lá quem para sabe-se lá o quê

a mulher da TV indignada e assustada com a menina bicho, que faz gestos obcenos para a câmera ameaçadora


Aquela menina hoje deixou-se escapar. Esqueceu os olhos bravos, esqueceu de esconder-se atráz do blusão. Ela encontrou um bloco e uma caneta. E como se fosse só menina, desenhou uma casa, um sol, um jardim.

E tem mais, num abuso próprio dos libertários, a menina desenhou um balanço e nesse balanço era ela quem subia e descia com os pés esticados e um sorriso que escapou da folha e foi parar em seu rosto de menina quase moça, quase gente de verdade.


(Para Letícia)

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Amor e sexo por toda vida

Foi numa manhã de sábado que encontrei Vlado depois de oito anos de separação.

Ele estava na estante de literatura estrangeira, concentrado num livro grosso que folheava delicadamente. “Eu não conseguiria ler livros no computador. Não aqueles pelos quais me apaixono. Esses eu preciso sentir, tocar”. Sempre discutíamos se a internet facilitaria a democratização do acesso à literatura. Falavamos sobre a construção dos personagens, os estilos narrativos e os ardentes e impossíveis amores fictícios. Falavamos disso com empolgação e eramos pegos de surpresa um e outro, quando sentíamos escapar em meio as discussões literárias, o inconfessável desejo de estar juntos.

Protegida pela camada de livros que nos separava, observei alguns cabelos brancos emoldurando o rosto que tanto amei e pensei se ainda sentia o mesmo.

Não. Definitivamente, não. Amadureci. Não preciso mais de uma relação velada como essa. Hoje posso falar do que sinto sem medo. Afinal, pago minhas contas, tenho um trabalho que me dá prazer e namoro com quem bem entender.

Enquanto enumerava os motivos para não me derreter diante de Vlado, ele levantou o rosto e olhou direto nos meus olhos. Senti as pernas tremendo, as mãos suando e uma leve tontura. Talvez um circuito na área tegmentar central, numa região do mesencéfalo bem no meio da minha cabeça, fora ativado. Se sim, então era paixão eterna conforme acabara de ler na revista que ainda estava em minhas mãos. Tampei a capa ilustrada com um casal colorido cuja manchete prometia “amor e sexo por toda vida”, assim que Vlado parou diante dos meus olhos. Antes que eu pudesse escapar ouvi um familiar e delicioso “Jô! Como você está linda!”. Pronto! Os oito anos em que falamos de amenidades somente por e-mail viraram fumaça.

Durante a conversa no Café da livraria, lamentamos o conflito que matava crianças em Gaza e falamos sobre a vida, a crise financeira, as viagens dele e as minhas, e se, enfim, ele se convencera de que a internet democratizaria o acesso à literatura. Rimos da obstinada opinião dele e tomamos o último gole de café. Tudo como antes. Como se a a saudade dolorida que sentimos um do outro durante esses oito anos não tivesse nos proporcionado algumas solitárias noites de insônia.

Esqueci minha pretensa maturidade e o convidei, casualmente, para conhecer meu novo apartamento.Ele, casualmente, aceitou.

No caminho para casa sentia um misto de alegria e desilusão. Sabia que desceríamos em silêncio, que ele tomaria a iniciativa de me beijar um beijo terno e apertado para em seguida atropelarmos os obstáculos até minha cama. Seria maravilhoso e quase perfeito, como sempre. E como sempre, faltaria somente dizer o quanto precisávamos um do outro.

Mas assim que abri a porta e pousei a bolsa sobre o balcão me virando para receber o primeiro beijo, Vlado me surpreendeu comentando sobre as coloridas flores que faziam par no vaso, “Nossa, que lindas!”. Por um segundo pensei em tudo que queria dizer, da saudade que senti e de como procurei aquele beijo terno em outros homens sem encontrar. Mas fui vencida mais uma vez e impotente, respondi: “Não se iluda, Vlado. Essas rosas são de plástico.” e recebi meu milionésimo “primeiro beijo”.