domingo, 30 de janeiro de 2011

Em alto mar!

Enfim, a viagem recomeça (veja nos comentários a contagem de votos)...








O adultério de Geraldo

No início Geraldo e Gildete tratavam-se como Gê e Gil. Gê queria filhos logo, Gil queria esperar, tinha receio que o corpo mudasse e o marido não a olhasse mais com tanto desejo. Gê ficou envaidecido, tudo bem, que esperassem mais um pouco. Quando Gê chegava em casa sempre encontrava uma esposa apaixonada, disposta e feliz. Gil esperava o marido com jantares deliciosos: carnes assadas, bolinhos de bacalhau, batatas souté, bananas flambadas. Os anos foram passando. A preocupação de Gil em manter o marido apaixonado por ela, aumentando. Primeiro Gil achou que estava engordando e parou de fazer os bolinhos. Decidiu que somente assados seriam permitidos no jantar. Gê achou lindo o cuidado da esposa. Tudo bem, comeriam os deliciosos bolinhos da Gil em outras ocasiões. Filhos? Gil agora queria perder peso pra ficar tranqüila durante a gravidez.


Os anos continuaram passando, gradativamente os pratos no jantar diminuindo. Até que um dia Geraldo chega em casa e encontra Gildete na esteira em frente à TV, suada, cabelos amarrados. Na mesa, um prato de sopa magra. Geraldo questionou, argumentou, pediu, implorou para que a esposa ficasse tranqüila. Gildete era linda, mesmo depois de vinte anos de casamento, Geraldo ainda sentia-se apaixonado por ela. O marido desesperado chegou a suplicar, de joelhos, por uma maminha ao alho assada no forno lento. Mas nada, Gildete estava decidida a salvar ela e o marido da viagem sem volta ao mundo do maléfico e temido colesterol, dos açúcares assassinos, do sal em demasia.


Mais uma vez Geraldo se conformou. Gildete, além de magra, era obstinada. E foi assim que chegaram ao início da velhice: sem filhos, Gildete magra e Geraldo conformado. O marido acreditava não ter mais sonhos, a esposa acreditava ter colocado tudo em ordem, afinal. Mas isso foi antes daquele domingo...


Após o desjejum _ duas torradas light, um pedaço fino de queijo branco, um copo de suco natural de fruta, ou a própria fruta (nunca os dois, afinal a vida é feita de escolhas)_ iriam, Geraldo e Gildete ao mercado. Segundo a mulher aquele era o melhor horário. Inconformado de ter que levantar tão cedo num domingo, Geraldo abandonou o leito quente e macio rodeado por generosos travesseiros e, obedientemente, fez o seu desjejum escolhendo a fruta só pela sensação de que estava mordendo algo. E seguiram para o mercado.


No mercado, Geraldo era o ajudante de compra, portanto deveria ficar calado, limitando-se a colocar no carrinho os produtos indicados pela esposa, por sua vez orientada pelo Dr. Você é o Que Você Come, conceituado endocrinologista pós-graduado em nutrição, por quem o marido também estava sendo “tratado”. Escolher algum produto somente pelo prazer, jamais! A saúde em primeiro lugar.


Aqueles corredores intermináveis de potes brancos e discretos contendo um irritante sub título “light”, ou “diet”, ou ainda “produto natural, não contém gordura trans", causavam um tédio sem tamanho em Geraldo. Conformado, o marido estava retirando o frasco de adoçante e arrumando no carrinho de forma organizada e segura quando um pedido de sua A-DO-RÁ-VEL esposa o surpreendeu:


_ Querido, vá até a seção de verduras sem agrotóxicos e veja se chegou alfafa, sim?


_Si-sim...mas...e você?


_Eu ficarei aqui aguardando o aspartame que o rapaz foi buscar.


Geraldo não acreditava! Em anos aquela era a primeira vez que Gildete aliviava a vigilância para que o marido não cedesse às tentações da gula. Liberdade, enfim a liberdade. E como qualquer recém liberto (está certo que era apenas um indulto) Geraldo experimentou um minuto de confusão: por onde iria? Pela seção de chocolates e biscoitos com gordura trans? Ou passaria pelo açougue, entre picanhas e suas proibitivas capas de gordura? Respirou fundo retomando as rédeas de seu raciocínio e desenhou o trajeto mentalmente: “chocolates e biscoitos”, “massas e molhos”, “açougue” (quem sabe já não estariam assando frango) e por fim a alfafa...afinal nem tudo é perfeito e o inesperável indulto, com certeza, tinha hora pra acabar.


Aquele foi um dos passeios mais prazerosos e inesquecíveis da vida de Geraldo. Os corredores eram coloridos e entre eles a vida era alegre e sem culpas. No açougue, um chef de estrutura generosa e faces coradas descrevia uma receita de pernil suíno: “ao final, após cozido e dourado, joga-se óleo fervendo sobre o couro para que ele se transforme numa crocante camada de pururuca envolvendo toda a carne, que a essa altura já deve estar macia como um algodão!” Ahhhh, enfim a vida sorria pra Geraldo novamente...


Mas eis que passos rápidos e decididos se aproximam e, antes que o marido tenha tempo de sair correndo dali direto pra seção de verduras, a mulher o surpreende num deleite imaginário com o...Pernil à Pururuca.


_GERALDOOO! A alfafa é do outro lado, o que está fazendo aqui?


_Eu!? Aqui? Bem, acho que me perdi querida...


Impaciente a mulher apontou a seção de verduras e foi seguindo o marido que evitava o olhar desconfiado da esposa.


***


O que Geraldo não poderia imaginar é que aquele era o dia em que os corações sedentos de vida e paixão iriam, finalmente, experimentar a doçura dos amores inesperados.


***


Geraldo seguia em direção à alfafa quando avistou...ela! Encostada no balcão refrigerado bem ao lado das verduras. Sua face alva em contraste com o brilho carmim emitia uma espécie de energia hipnotizante. Ele teve medo de ser surpreendido novamente pela esposa e, num esforço corajoso, tentava ganhar tempo comentando sobre a importância dos produtos cultivados sem agrotóxicos. Enquanto andava de uma verdura a outra, sempre evitando encarar a esposa que já estava zonza com tanta agitação, percebia um olhar insistente e provocador. Por um instante, Geraldo a fitou sentindo uma espécie de tontura. Ele procurou rapidamente na memória um de seus olhares sedutores, infalíveis nos tempos de baile do extinto Clube Recreativo, e ensaiou um sorriso confiante. Seu coração acelerava e as pernas vacilaram por um instante.


Gildete notou o "desconforto" do marido e resolveu que precisavam ir embora. Definitivamente ele estava muito estranho.


_Amanhã vou te levar ao médico! Querido você precisa se cuidar, se alimentar melhor, blá blá blá_ e finalizou com um desanimador "afinal, você não é mais um garotinho, meu bem!"


Naquela noite, Geraldo esteve febril. Em meio aos suores balbuciava palavras ininteligíveis e sorria e chegou mesmo a gargalhar. A esposa estava intrigada e enquanto passava panos molhados na testa do marido os sentimentos se confundiam. Em alguns momentos, sentia pena de vê-lo sofrendo daquela maneira, em outros parecia que o marido sorria pra ela. Mas quando ouviu aquele ruído parecido com uma gargalhada teve ganas de enforcá-lo com aquele paninho úmido! Era tarde quando Geraldo, enfim, dormiu e a esposa pode descansar. Queria estar de pé bem cedo para levá-lo ao médico. O marido estava fora de si, com certeza devia estar comendo doces escondido!


No outro dia, Geraldo acordou cedo. O travesseiro molhado de suor dissipou rapidamente a confusão matinal. Uma sensação de que o sonho do qual acabara de acordar, fora real, fizera com que ele entrasse novamente num estado de paixão. Foi quase flutuando que ele saiu da cama e se arrumou. Fez a barba caprichosamente, espalhando o creme com suavidade e por fim arrematou com sua loção pós-barba, que há tempos estava esquecida no armarinho do banheiro. Enquanto se olhava no espelho, o sonho retornou límpido em sua memória: o mercado estava quase completamente vazio, era tudo mais bonito e o ambiente fora suavizado pela pouca luz. Foi um momento único. Enquanto um violinista solitário tocava as Quatro Estações, ele se aproximava lentamente do balcão refrigerado. Ela estava ainda mais bela. As faces pareciam mais alvas destacando o brilho carmim que se espalhava pelas prateleiras ao seu redor. Ele caminhava com os passos coreografados pelos sons do violino e seus olhos confiantes da própria sedução não desviaram nem um instante do objeto de sua paixão. E, em meio à música, ele ouviu uma voz sussurrando “decifra-me, decifra-me”...


Quando a esposa acordou e percebeu que estava só na cama, levantou num salto e saiu pela casa gritando pelo marido. Não teve uma noite tranqüila. Durante o sono, um pesadelo em que ele comia um pote de chantily puro, enquanto ela, impotente, apenas observava, a atormentou de uma maneira estranha. Aquilo foi real demais para que Gildete não se desesperasse. Ela o procurou pela casa toda. Já havia desistido quando um lampejo a fez lembrar do que acontecera no dia anterior. Claro, o mercado!


Foi ainda com o sonho pulsando em sua mente que Geraldo resolveu voltar ao mercado. Entrou quando os funcionários ainda terminavam a limpeza, arrumavam prateleiras, enfim, colocavam tudo em ordem para receber aos clientes. Como um namorado ansioso pelo primeiro encontro de amor, Geraldo foi direto para seção de doces refrigerados. Mas a cena que presenciou o abalou profundamente. O objeto de sua paixão, que provocara as alucinações febris da noite anterior, estava jogado num carrinho em que um funcionário amontoava produtos vencidos. Geraldo correu na tentativa de salvar sua amada de face alva e carmim. Não se importava se o brilho que exibia no dia anterior havia se transformado num vermelho opaco e sem vida. Ele estava totalmente tomado pelo desejo, sua boca salivava, ele não desistiria logo agora. Geraldo precisava saborear aquela torta de morango e creme de qualquer forma! Mesmo com a gelatina sem brilho, mesmo com as frutas já azedas e o creme sem sabor. Era questão de vida ou morte. Geraldo empurrou o funcionário que retirava os produtos vencidos do refrigerador e agarrou sua torta com toda força. Chorando, sentado no chão, Geraldo comia o doce como quem se agarra à última bóia de um navio em naufrágio.


Quando Gildete chegou, já era tarde. Ainda tentou tirar o marido daquela posição ridícula, sem sucesso. Decepcionada, agora era Gildete quem implorava a Geraldo que voltasse com ela pra casa, que largasse aquela dissimulada torta de morango, que despertasse daquela alucinação.


Para Geraldo aquela foi a gota d´água. Decidiu que nunca mais deixaria de comer doces, picanhas e bolinhos fritos. Arrumou suas malas e desapareceu sem deixar pistas.


O que aconteceu com Gildete foi trágico. Inconformada por ter sido trocada por um doce, a esposa traída passou a comer todas as tortas de morango e creme que encontrava pela frente. Queria consumir o pivô de sua separação. Passaram-se meses quando Gildete, sentada a frente da TV com um pote de sorvete nas mãos, assistiu a uma notícia bombástica: num canal pago, a TV gritava “revelação brasileira na pâtisserie francesa”. Gildete não acreditou no que viu: sorridente e com as faces coradas estava Geraldo apresentando sua aclamada receita de tortas de morango com creme de chantily.

3 comentários:

bisteca disse...

rs adorei, Carol, parabéns!
a picanha com alho em fogo lento foi muito boa. mas não gostei de encontrar o Vivaldi, hoje, pela 2ª vez, hahahahahaha

sucesso pra você!

Sonhos de Orieta disse...

Valew, Sheila!!!!! Nossa, valeu pela divulgação tb! Sempre leio seu blog, desde antes de vir pra cá, foi muito legal me ver lá!

Ah, pra vc que tá lendo curioso(a) o blog da Sheila é www.papodeviralata.com, vai lá!

Pedro Marques disse...

Olá, Carol, como vai? A busca pela magreza custa caro. Custa o prazer do garfo e a bom convívio à mesa. Custa a vida toda a esculpir um corpo que no, final, tornará ao pó, inescapavelmente magro. Espécie de culto a forma sob a pele da saúde química ou da doença mental. O engraçado é ver Geraldo aprisionado pelo desejo do outro, cerceado, catequizado como os drogados em certos cultos. O cavalo precisa mirar sempre adiante, o problema é que uma olhadela de lado faz ruir o muro da autoridade. Que se encarcerem os desejos com regras, haverá sempre pernis, doces e mulheres para reeditar a saga da serpente. O passeio no supermercado é a melhor imagem para isso. Uma escrita entre irônica e narrativa foi me conduzindo a reflexões do tipo. Mas pra que serve a literatura, né? Parabéns pelo conto e desculpe por me demorar a lê-lo. Abraço grande pra ti e pro Rodrigo. Pedrinho Marques.